A LENDA DO NINHO DE OURO

A Maria e a companheira de Espera Feliz, fiéis escudeiras do Padre José, mexiam no panelão de pedra com a colher de pau o sabão de decoada, faltando um átimo para o ponto. De junto, a masseira pronta para receber o cozimento negro. Nisto, o padre atravessou a correr a passarela de madeira que unia a parte mais alta do Altar-Mor ao andar de cima da Casa Paroquial, pelos fundos. Assoprava marimbondo, vermelho que nem ficava quando na sexta-feira santa improperava os inimigos de Jesus, a batina preta que varria poeira, os pés que tocavam compasso binário PUM-pum, PUM-pum...carregando na perna esquerda mais curta o peso da dor do coração ferido.

Cambaleou, a mão conteve o sangue espiritual do coração, as narinas puxavam o ar. Esparramou-se na cadeira de balanço.

- Figlio di Satanasca, há de secar-lhe a mão a quem furtou o cordão de ouro di Nostra Signora do Rosário, padroeira da Freguesia, por doação de Dom Pedro Segundo, que deixou na terra do gaturamo, às margens do Rio Entre Folhas, o sino com as insígnias imperiais. Onde se erguia a ermida está o belo santuário.

Falou do sumiço da jóia e muito mais. Rogou praga o filho de imigrantes calabreses vindo das cercanias de Fuscaldo, no calcanhar da bota italiana. As frases saiam engroladas. O sabão não deu ponto, foi preciso chá de unha-de-gato com folhas de goiabeira para acalmar-lhe a fúria divina. Estava jovem, sem as gorduras do tempo, resistiu ao transe sem desistir da guerra.

Os mais velhos juram que praga dele era tiro-e-queda.

Cochichavam acocorados em volta do Pau da Grosa, que sumiram também os cordões de ouro das donzelas da Vila no verão-outono do ano da graça de 1938. Era o castigo celeste em andamento. O mistério se prolongou sem explicação.

- Pai, o mal é de Satanás ?

- Arreda, menino besta !

- Faz assim não, Seo Juca, entendimento errado dele. É de se rezar pra santa ter compaixão.

Foi assim que, além da santinha do altar, a Lalinha, a Dulcinha, a Neuza, a Dorinha, a Dos Anjos, a Tereza, não encontraram no toucador, junto à janela, os cordões com que se enfeitavam pra a Missa das Dez que começava ao Meio-Dia e terminava pelas três da tarde.

Empoleirado no último degrau do Altar-Mor, sentado na cadeira presbiteral, esculpida pelo primo, rodeado de roceiros sentados nos degraus e de mamães dando de mamar às crias, paramentado com a casula de fios de prata, velha do tempo da ordenação, remendada, Padre José não se consolava.

- Há de secar-lhe a mão ao sacrílego !

Vieram as águas de setembro, as andorinhas já haviam aninhado, procriado e arribado para o Norte em busca de outros verões. Menos uma, estranha criatura flagrada em certas janelas. Foi assim que a história se propagou. Ao dar goteira no telhado por cima dos Mistérios Gloriosos de Salvador Mantuano, o primo do Padre José. Seo Antônio Diola, marceneiro que fizera o telhado, acudiu e deu com o ninho de ouro, tecido com sete cordões de ouro, o da Virgem mais os das filhas de Entre-Folhas. Dentro, uma andorinha seca chocando três ovos de ouro. Adelina e Elpídia confirmam o relato sobrenatural. Outra versão fala de cinco ovos, um para cada mistério glorioso do terço. Sebastião do Padre escondeu a peça milagrosa na parede do Altar-Mor. A quem lhe perguntava porque não repusera o ornato sagrado no pescoço da padroeira, sorria com as mãos em prece.

- Mãe carece é de muita paz !

Até aí vai a lenda e eu, escriba, dou fé para gáudio do futuro.

Hélio Amaral - Jornalista

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