PRIMEIRO PADRE DE ENTRE FOLHAS

 

Da Matriz de Nossa Senhora do Rosário é uma meia légua, primeiro margeando o córrego Entre Folhas, depois trepando pelo costado da serra até o alto do Silvestre, enfim transpondo a porteira que põe o viajante nas terras da Fazenda Salim. A estrada segue coleando em descida acentuada pelo outro lado da serra numa geografia estupenda de penhascos, florestas, lavouras de milho e taquarais, na direçãio de Dom Lara. Nas águas de março, outro riacho alimentava o dínamo da Companhia Força e Luz Entre Folhas que recheava de brasas vagalúmicas os bulbos pendurados dos fios elétricos que arrancavam dos tetos ou das esteiras de taquara caiada, enegrecidas pela fumaça das lamparinas teimosas, a pontificar solenes. O personagem principal desta narração, o Padre Geraldo, é sobrinho do Padre Dionísio Homem de Faria, primeiro construtor da Matriz de Entre Folhas. Fez apenas o pórtico da Matriz, depois entregou a freguesia para o Padre José e foi-se para novas atribuições. Passou a fazenda para o Salim e influenciou, com zelo, a vocação eclesiástica do sobrinho.

 

É, pois, a narrativa do Padre Geraldo Homem de Faria, primeiro sacerdote católico nascido no então distrito de Caratinga, aqui neste santuário de águas e animais silvestres da Fazenda Salim, no dia 9 de novembro de 1923. Estudou com Dona Isabel Vieira, a seguir virou interno em Mariana, acabando por ser ungido presbítero por Dom Cavati, em Caratinga, 1949. Dirigiu a paróquia de Bom Jesus do Galho, por doze anos, e a de Inhapim, de 1962 a 1998, tornando-se Pároco Emérito desta freguesia, desde então. Fomos encontrá-lo na quinta-feira-santa de 2002 à frente do rebanho, oficiando a liturgia especial do penúltimo dia da quaresma.

 

O Padre Gerado é definitivamente um entrefolhense sobrenatural. A função se dava na lateral da praça da Matriz. Este narrador, o Dr. José Soares Valente, a Irmã Ana Lúcia, Monalisa e Valentina assistiram ao ofício. Estava ele ladeado por padres e diáconos, tendo ao fundo os doze "apóstolos" na expectativa do "lava-pés". A liderança da hierática manifestação era inconteste. A figura imponente, a voz de orador-mor da Vertente do Caparaó, comandava tudo. O olhar de pastor varria a coletividade que entoava cantorias atualizadas, executava coreografias correntes e pronunciava palavras-de-ordem sacras. Lembro-me de um discurso do Padre Geraldo no dia 12 de outubro de 1965 no salão paroquial de Entre Folhas. É o mesmo verbo, melodioso e severo.

 

Enquanto o fiel rebanho desenrolava as memórias religiosas, o interior da Matriz, em luz festiva, estava quase deserto. Lá estão dois afrescos extraordinariamente belos de Salvatore Mantuano, o gênio do Caparaó, encomendados pelo Padre Geraldo. O templo enchia-se com os painéis de Salvatore e com o eco do Yapi’i, o pássaro da família do melro que a sanha dos apanhadores de aves raras quase botou em extinção. O trilado metafísico dava colorido canoro às cenas ilustradas nas paredes e no teto. Meu espírito pairou sobre a paisagem, vagando, e o entrefolhense notório não é mais do que um detalhe do panorama amigo da igreja iluminada, das escadarias e das palmeiras imperiais, tanto quanto os laranjais, a artesania do tacho de cobre e as ervas que brotam nos quintais banhados pela lua quase cheia da quinta-feira-santa. Amanso o coração com mil palavras. Não, eu não podia ter interrompido o colóquio do homem tostado do sol e tinto com a lua da quaresma. As quaresmeiras da BR 116, próximas à capela da Aparecida, entre Inhapim e Caratinga, formavam um cortejo de glória.

 

Hélio Amaral - Correspondente do Rio - helio17@bol.com.br