A PERNA DE BENZINHO, OU, O BODE |
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casinha era humilde, encravada entre tantas, todas, igualzinhas uma e
outra, praxe de final de rua, onde os pobres se acotovelam, quando podem,
em janelas impregnadas de fungo, equilibradas em paredes de adobe sem
reboco, quando não da ripa linhenta de palmito, travadas com cipó São
João e revestidas de barro cru.
Como a aparência externa, o interior também era uniforme: piso de
chão batido, betumado de bosta-de-boi, paredes revestidas de
barro-branco e o fogão de lenha na vigília da porta da cozinha, boca
fumegante voltada pro cômodo da sala, ornamentada com estampa de N. Sra.
Aparecida e o banco de madeira com pernas arreganhadas.
O de comer, só o essencial. Havia mesmo dias em que o desjejum era uma
cruz na boca e a misericórdia de Deus.
Tamanha miséria não afogava o carinho entre os dois amancebados, às
mil maravilhas no benzin pra lá,
benzin pra cá, naquele nada de casebre. Quitéria
bem cedo sacudia Venâncio, emborcado no colchão de palha de milho: levanta benzin!, dava um trato ligeiro na arrumação da cozinha e
sumia coxeando da perna, emaranhando guaximas pelo quintal. Mergulhava até
a cintura, no remanso do corguinho e se punha a lavar... sabão-preto,
fabricado em casa mesmo, aproveitando resto de sebo do açougue, lata de
querosene, das grandes, equilibrada sobre fornalha de pedra batida e a
decoada pingando semana inteira: pim...
pim... pim... As roupas da vizinhança, servia para aumentar o ganhame;
essas, lavava com sabão Mossoró,
pintadinho que nem banana ouro, de cheiro mais suave, utilizado também para
o banho semanal do sábado, pois os trocados da lavação recomendavam
economia. De
sua casinha no lado contra do rio, Nania vigiava e reparava as dificuldades
daquela mulher trabalhadeira, vai-e-vem de semana inteira, com trouxa de
roupa na cabeça. Vida
difícil. Venâncio era aquela pustema de paciência e sossego. Uns bicos
daqui e de lá, na junta de lenha prá vender na rua, pegar animal no pasto,
um mandadozinho aqui, outro ali... quando dava de encontrar animal arisco e
tinha que correr atrás, dormia feito um inocente até perder o sol de
vista. De tarde, não perdia por nada uma fiada de prosa no pau-da-grosa.
Que estropiada! Correr animal daquele jeito em troca duns míseros
quinhentos reis, que não davam nem pra aumentar o tamanho da perna de
fumo... o jeito era dormir; dormir
às bandeiras despregadas, como dizia Quitéria.
Esticou os braços ainda adormecidos, enfiou os pés na botina
chiadeira e saiu, sem nem ao menos perceber que sua mulher, ainda não
retornara do batedor de roupa na
beira do corgo. Conversa de lavadeira não tem fim...Ganhou a rua empoeirada
e tomou o seu rumo. Enquanto caminhava a passo medido, tirou da orelha o toco
meio-pitado do cigarro de palha e acendia e reacendia o danado, que teimava
em ficar apagado. Acender a binga de metal amarelo exigia arte, técnica e
habilidade, fatores que o bendito do cigarro de palha não levava em
consideração.
Entretido com o manejo do equipamento, se viu de repente, cara a cara
com o Nania, que vinha em sentido contrário, acossando com um chicote o
pobre do Benzinho, já velho e manco, preso no coice do carrinho de cabrito
com seus fueiros cediços, entupido de tantas e tantas dúzias de bambu, que
Benzinho arrastava coxeando com dificuldade e sob a tortura do chicotão de
Nania. Venâncio
sai em defesa de Benzinho: - Ô camarada, cê num tem dó desse pobre animal? - Que o que Venâncio... resmunga Nania, com cara de quem não queria conversa. -
Cê num vê o aleijão do bicho, não; num vê o tanto que ele cuxeia e
que é uma maldade ficá obrigando o pobre trabaiá tanto, e ainda com uma
violência desse suporte?! Completa Venâncio
indignado.
...cê tá achando ruim de que? Aquela sua muié Quitéria cuxeia
mais que esse bode velho, e cê põe ela prá lavá roupa dentro do corgo
todo dia, sem dó ninhuma; e que que cê tem com isso, o bode é meu?!
Venâncio engoliu em seco, deu uma estatelada e desistiu do pau-da-grosa.
Voltou prá casa, descalçou as botinas chiadeiras, encostou a cabeça
no batente roliço da porta da cozinha, fixou o olhar na direção do
remanso do corguinho e ficou pensando na perna coxa de Quitéria:
Não é que ela e Benzinho
mancavam da perna esquerda!? sabará
27/12/00
Dr. Wagner M.
Martins |
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