AMASSEI O DEDO NA PORTA

 

         -         Se me deres seis e meio, ainda fico a lhe dever um favor.

Não tomou aquilo como uma provocação.

 

Atravessou a rua meio cabisbaixo, chutou o monturo de lixo entre o calçamento e a guia do passeio, sentou no chão e ficou pensando.

        

E se alguém viesse a descobrir?

 

         Já eram passados tantos anos e a situação ainda era a mesma do começo. Não encontraria ninguém daquele jeito, mas diante de uma proposta naquelas proporções esbarrava no medo que lhe subia da alma, confundindo-se com o prazer de ter vivido cada momento daqueles tantos anos.

 

         Era muito o que estava a pedir. Do outro lado da rua emborcado num ambiente pesado, carregado de fumo e cheiro de carne humana rescendia o alarido da proposta, repetindo insistentemente em seus ouvidos:

 

         - Se me deres seis e meio...

 

         Ficou quieto e imóvel. Sentado no meio-fio observava de entreolhares os joelhos das mulheres, vistosos e reluzentes sob a barra levantada dos vestidos, enquanto cantavam música de Reginaldo Rossi e dançavam num corrupio ritmado, desenvolvendo evoluções que mais pareciam um ritual selvagem de conquista. Muitos daqueles trejeitos ele bem que conhecia. Quantos deles não foram ensaiados entre cochichos sibilantes que desabrochavam na forma de gritinhos miúdos e indecentes saídos por entremeio às  meia-falhas cerradas de seus dentes irregulares!

 

         Onde arranjaria os seis e meio?

 

         Haveria de encontrar uma solução que conciliasse o estado de penúria em que se encontrava e a proposta colocada de forma tão contundente. Não transcorrera mais que meia hora e já sentia falta dos seus afagos safados, dos seus trejeitos sensuais, do repicado de seus passos - principalmente quando aparecia se abrindo em risos, recendendo a suor e álcool, afinada por umas doses mais carregadas de conhaque de terceira categoria -, mesmo podendo verificar sua presença ali do outro lado.

 

         Resistiria até onde fosse possível.

 

         Viu quando lhe envolveram os dois braços fortes, daqueles que vivem  soltos e descontrolados nesse mundo de meu Deus. Sabia com certeza que o martírio estava presente também do outro lado da rua; podia perceber isso no semblante de repulsa e indignação claramente estampado nos modos como conduzia aquele espetáculo de degradação.

 

         Se me deres seis meio...  Regateira, isso sim é o que era.

 

         Desde o primeiro momento, rejeitara qualquer proposta sua. É bem verdade que tudo não passou de uma brincadeira mal começada. Mal começada e mal conduzida naqueles anos todos, mas era só falar, propor alguma coisa e o seu rugido vinha como o de um animal enjaulado sem a noção exata da distância de segurança.

 

         Estava decidido a não mais lhe procurar. Não lhe dirigiria o olhar, a partir daquele momento.

 

Fazia frio e a sensação era de que tudo nele havia endurecido. Levantou-se pesadamente, tremia; enfiou as duas mãos nos bolsos vazios da calça como se quisesse se enfiar todo bolso adentro, e começou a caminhar sem direção, impondo esforços incondicionados à falibilidade de sua consciência ressentida e traída tantas vezes para que não se deixasse perder na incoerência do retorno.

        

Quando se deu conta, a porta de entrada estava ali, paradinha, na sua frente. Os dois sulcos de trinca no vidro canelado não deixavam nenhuma dúvida.  Entrou no salão vazio e ficou a ouvir o silêncio que a  noite carregava. Todos dormiam.

 

 Avançou na direção do quarto e pensou que poderia dormir também.

 

         A pancada foi tão violenta que quase lhe arrancou a unha com dedo e tudo.

 

         Aiii....amassei o dedo no batente da porta!

 

Afinal, o que era mesmo aquele “seis e meio”?

             Dr. Wagner M. Martins - 01/11/00
   
w_mmartins@bol.com.br

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