O ENCANTADOR DE RATOS

 

           Zeca chegou e já não era possível fazer mais nada. O impacto da notícia criou um forte desconforto e nos deixou a todos muito atordoados. Ninguém sabia o que havia de fato acontecido...

 

Tivera sonhos alternados sem uma correspondente exata durante a noite. O bêbado Tataruê conduzido pra casa, sob os olhares vigilantes da mãe, o confronto entre as baterias do Colégio Caratinga e do Nossa Senhora das Graças, ah!, espetáculo...

 

O entorno da Catedral, parte central da cidade, completamente dominado e se anunciou a aproximação dos “enfermeiros”(assim chamados por força dos uniformes brancos que usavam nos desfiles) pelo reboar de suas cornetas esganiçadas...

 

“...sensação era de muita apreensão. O respeito, a gentileza de desviar a rota, era bater em retirada, assunto de pauta no dia seguinte. O confronto era eterno entre as duas baterias, disputa que valia a fama de serem consideradas as duas melhores da cidade. Não havia retorno. Com silvo longo de apito, nervoso, o ritmo foi interrompido. Aguda palidez se formava no rosto de cada um de nós, visível à distância. Silêncio absoluto, quebrado apenas pelo ritmo afinado da bateria inimiga, cada vez mais próxima. O footing, se enregela e pára. Acostumado e apático, pressente o que virá e se volta, não mais para a moça morena da Rua Nova, do Limoeiro...”

 

“...os pulmões se enchem, a ordem é atacar. Instruções breves e tarará-tarará... bum-ba... tarará-tarará... bum-ba..., sobem as baquetas, no açoite firme dos instrumentos, aguçando ao máximo suas potências.  Tá... tá-tá-tá-tá-tá... tá...tá-tá-tá-tá-tá..., a resposta vem, no repique dos surdos; e as baquetas sobem e descem formando um espetáculo em torno das cabeças àquela altura mais que coroadas”.

 

Porquanto, o que se viu não se descreve; as colunas se engalfinham num entrecruzado de cadências contidas pela sisudez de cada batida, certeira e mágica, ritmo firme gracioso e moleque, contraste melodioso de corneta, e cada um, tanto os de lá, quanto os de cá, brincaram naquela noite; de soldadinho de chumbo de polichinelo, de marcha-soldado-cabeça-de-papel, e tudo se transformava numa algaravia eloqüente e cheia de gozo. O footing, ah, o footing, aplaudia, que não havia outro meio.

 

O sol virava do meio-dia quando pegou a “gaiola” e saiu...

           

Seguiu até o centro da praça gramada, se acocorou e ficou observando o pobre do animalzinho acuado dentro da ratoeira. A sorte dele escorria de suas mãos...

           

Sol quente, pasmaceira de manhã infértil em cidadezinha do interior e a certeza de que a vida era tocada a desafios; questão de sobrevivência!

 

            “...o bêbado Tataruê segue ao lado da mãe. -“Coitada da omãe; tão boazinha... mãe a gente respeita...”  Sempre agia daquele jeito. A mãe era-lhe sinônimo de docilidade.

 

Em horas altas se ouvia seu violão, acompanhado da voz grave...

 

oh linda imagem de mulher que me seduz

a se eu pudesse tu estarias num altar...

 

Percorria as ruas dedilhando o instrumento. Não esperava chama de luz em janela de moça donzela nenhuma; puro prazer de seresteiro mesmo, ou teria ele alguma paixão incrustada na alma de menino?! Ela chegava mansamente, surgida não se sabe de onde. Quando pressentia o leve golpe do porrete nas costas – “pra casa sem-vergonha” – Tataruê respondia no estalo:

 

“Peste... ô disgraça de minino sem pai, que num dá sussego. Vai sombrá porco, capeta!...”

 

“Oh! É a omãe... disculpa minha santinha, já tamos indo, é só acabar mais essa, cê espera, né, omãe...

 

“és a rainha do meu sonho és a luz”

 

(“Mãe a gente respeita... mãe a gente respeita....”)  Seguiam os dois, lado a lado, como namorados na noite sem luz...

 

Solto o bicho a voz ecoa no descampado: olh´o rato!!!

 

Uma multidão de “irracionais” em torno de si, não se sabe de onde viera; começa ali a grande batalha. E chuta, e chuta, e chuta, e o pobrezinho do animal voa pelos ares, e se debilita...

 

A noticia lhe deixou impotente.

 

O irmão morto, e irmão morto é parte da gente que morre também.

 

Segue a algazarra; a gaiola lhe resta nas mãos, vazia(s). Olhou fixo no horizonte. O Xerife tinha perdido a batalha, como o rato naquela praça ali, bem do seu lado. Ouviu a bateria, longe e distante -  estariam de volta os enfermeiros?

 

O espectro de Tataruê ao lado de sua “ômãe”, visita-lhe em pleno meio dia, como se lhe quisesse reforçar sentimentos de fraternidade. O filho bêbado, excrescência talvez, para tantos, esguio e lépido em pose magistral de seresteiro, seguia, violão premido ao peito soletrando versos de paixão(oh linda imagem...) e ela, sua “ômãe”, juntinho dele, ao seu lado, passos miúdos, lentos – que o filho respeitava – reduzidos ao impacto da idade pesada, segura nas mãos a vara do açoite(mais carinho que açoite), e ouve o canto, no canto que é do seu filho.

 

Ele estava deitado em posição fetal e já não lhe restava mais qualquer espectro de vida; Zeca chegou ao local...

 

...o entusiasmo da chegada a São Paulo... Nem as longas horas de viagem, a dificuldade inicial de adaptação, a distância dos amigos, lhe tiravam o otimismo de realizar o sonho de infância, desde quando Leônidas viajou com o pai e não voltou mais. Virou operário, de carteira assinada e tal...

 

Por horas e mais horas, se perdia no refino dispensado ao veículo que lhe embotou a paixão pelos homens. Em poucos meses conviveram num relacionamento de dependência, homem e máquina, até se perderem naquele instante de negligência. Foi-se o “cambeta”, não viria mais, ele, “canhotando” cigarrinho sem filtro entre os dedos, caniço nas costas... Era agora, ele, apenas o resultado de sua vontade...

 

...prensado entre as ferragens, o sangue corria vermelho no canto da boca, lado direito, e os olhos, meio cerrados, brilhavam num brilho cor de cinza. Ele não tinha mais vida... o veículo, amassado, lhe amassava o peito, com violência, esvaia-se em combustível gota por gota, lado esquerdo...

 

...era um aspecto de ingenuidade, das mais puras. Aparência sevilhana no bigodinho de Cantinflas, suíças realçadas com prateado leve... não, não era o Xerife, não era o “cambeta”.

 

Ouviu do chão, subindo das sombras da árvore “três-arrancos” uma reboada simbolista de versos:

 

“As estrelas em seus halos

Brilham com brilhos sinistros...

Cornamusas e crótalos

Cítolas, cítaras, sistros,

Soam suaves, sonolentos,

Sonolentos e suaves,

Em suaves,

Suaves, lentos lamentos

De acentos

Graves,

Suaves...”

 

Não era Tataruê não, que este só entendia de violão...

 

Tomou do chão a gaiola. O rato, extraído de seus dedos a sorte, estava morto, estirado no chão da praça, vazia. Todos se foram... Outro viria no dia seguinte e a cena se repetiria.

 

Repetiu os versos:

 

“As estrelas em seus halos

Brilham com brilhos sinistros...

 

Estrelas, estrelas, estrelas... falavam os versos do bêbado da “três-arrancos”... era essa uma manhã de bêbados, de bêbados que cantam, que falam...

 

...e foi, ouvindo os versos de Gerson Ribeiro. As estrelas em seus halos... elas, as estrelas, precisavam dele em seus halos,  para sua constelação de brilhos sinistros, de lamentos lentos e suaves, apesar de graves.

 

Ele e as estrelas... ele, nas estrelas, pedaço de mim... marcha-soldado-cabeça-de-papel... o rato também... bola-na-praça-pique-esconde-chute-no-rato-canhoto-não-joga...

 

Eram dois encantados agora e ele os veria no céu, naquela madrugada...

 

 Wagner M. Martins – 30/05/2001
 
w_mmartins@bol.com.br

   

Esta página é mantida por Álem M. Martins e com a ajuda de internautas que enviam sugestões e artigos.
Não recebemos nenhuma ajuda de qualquer órgão publico.
Até o momento não houve interesse dos órgãos públicos municipais em usar esse espaço.