AS VOZES NOTURNAS DE JANUÁRIO CAPADOR

 

           Só restavam os dois ali.  

A noite avançava sobre a madrugada e Marciano, já cansado de improvisar no fabrico de cigarros de palha,  cochilava no canto do balcão.

 

Uma dose derradeira e repete o gesto manjado de quem bem entende de balcão de venda: apruma o corpo, despeja lá na glote de uma vezada só a talagada bem medida de três dedos, estala a língua e atira o restinho do Santo que escorre candidamente pela parede do balcão. Ajeitou o chapéu no alto da cabeça, estalou o chicote na bota de cano longo e se despediu.  

Pousou o pé no estribo e num golpe único, alcançou o colo macio do arreio. Num meneio de corpo, como que para ajeitar a distribuição do peso de Januário, a montaria pegou trote em direção ao final da rua.  

À medida em que se distanciavam, iam deixando para trás as casinhas minúsculas, de janelas tanto mais minúsculas quanto mais distantes ficavam do centro da cidade. A iluminação desapareceu por completo, e, cavaleiro e montaria ganharam a escuridão da estrada de terra batida.  

Conhecedor a palmo daquelas brenhas - quantas vezes cruzara aquele pé-de-serra! - soltou a guia e deixou que o passo frouxo da mulinha seguisse lento em ritmo de retorno.  

Voltar prá casa era sempre uma aventura. Nunca que Januário se preocupava com horários. Garrava numa conversa fiada e não se dava conta de que os minutos corriam contra sua disposição de não ir embora. Quando não mais tinha jeito, repetia o ritual de sempre. De qualquer forma, o cavalgar naquele horário e sem companhia servia como forma de um acerto de contas consigo mesmo. Quantos anos já ali, tocando sua harmônica de muitos baixos nos pagodes domingueiros e capando a marrãozada nos arredores daquelas tantas léguas!  

A aragem que subia da noite trazia no murmúrio do “corguinho”, a cantilena candongueira da madrugada, interrompida pelo “tchibum” do mergulho de algum animal perdido, fugindo de virar alimento para predador noturno.  

Reencontrava-se com os seus dias. Mestre na arte da castração, herdou do pai a maestria no manejo da lâmina, e recebera como legado o apelido pelo qual ficou conhecido. Era um privilegiado. Ninguém que tivesse chegado ali como ele, arrostado em cabeção de carro-de-boi, gozava de tamanho prestígio e admiração.  

Nos últimos tempos, fatos estranhos vinham ocorrendo por ali, desde que Januário começou a ouvir vozes durante a noite.  

Quando da última vez que resolveu verificar o que se passava, pode ficar observando um estranho cortejo atravessar o altinho da tranqueira, ganhar o descampado na divisa da encosta e desaparecer na capoeira miúda, onde as vozes sumiam.  

Dia seguinte o corgo todo tomou conhecimento do fato. Quem não tinha visto a procissão na madrugada? Coisa do outro mundo com certeza. Mas só Januário se lembrava das vozes.  

Sentia um meio que de esquisito naquele dia. O arrombamento da tulha de café e o desaparecimento de peças do engenho, era tudo meio estranho, não bastando aquela procissão de estranhos  vultos cortando a noite e levando caixão de finado.

 

Uma cantoria plangente como nas cerimônias de encomendação de almas, de repente ecoou pelo descampado, vindo na direção oposta, e Januário pode ouvir claramente o canto:

 

“Ó que contas rigorosas

“Tens de dar por toda a vida

“Confessa-te ó pecador

“Tens a tua alma perdida

 

Estranho arrepio percorreu-lhe a espinha e a mulinha ficou estática.

           

“À porta das Almas santas
“Bate Deus a toda hora
“As Almas lhe responderam
“Que quereis meu Deus agora?
“Quero que vindes comigo
“Para o Reino da Glória!

 

Estava ali, diante de seu susto o cortejo que vira dias atrás. Mais ou menos uns sete vultos  vestidos num roupão branco, conduziam um estranho caixão e repetiam em coro aquele cântico de agonia.  

No inusitado do encontro, cortou-se ao meio a cantoria, e estranho silêncio se fez.  

Num gesto de investida por parte do pretenso líder do grupo de penitentes, Januário não teve outra alternativa que não o enfrentamento. Forçou os calcanhares nas costelas da alimária, relutante em continuar, até que, premida pela insistência investiu sobre os penitentes, enquanto Januário brandia valentemente o seu chicote, dispersando o bando que se espalhou em desabalada carreira mato adentro.  

Na debandada, sobraram o caixão e Januário.  

Receoso do pecado que poderia representar a violação de objeto de adoração, não lhe restou alternativa se não verificar quem seria o finado e com as cautelas que acometem o ser vivente que se depara com alma de outro mundo, puxou a mortalha de um só lance e desnudou a finada alma:  

Sacos de café acondicionados sobre um estrado de madeira, eram conduzidos em séquito, ao som da ladainha dos penitentes.  

Estava ali a resposta para o arrombamento da tulha.

 

  17/10/00 - sabará

             Dr. Wagner M. Martins
   
w_mmartins@bol.com.br

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