LETÍCIA

 

 Bateu a porta com violência. Entrou pelo corredor sacolejando os cabelos de rabo de cavalo e sentou à cabeceira da mesa; parecia um corrupio. De repente ficou imóvel; olhos fixos no vazio... Estava ali a figura estraçalhada de quem passara a noite em claro sob efeito de alguma coisa que ia muito além de um porre comum.

Uma cidade começava a despertar lá fora. Foi até o banheiro, se despiu com determinação,  abriu o chuveiro e deixou a água morna lhe escorrer pelas partes do corpo. Era  preciso destituir de seu corpo toda a imundície adquirida naquele ambiente podre e insalubre. Saco! Que arrogância daqueles brucutus!

Vertidos de forma canhestra, os reflexos da política nacional chegavam ali de forma bastante suavizada. Merda de cidadezinha. Dava nojo viver ali. Cidade mais governista do país, era a puta que pariu!!!

Os contornos atrofiados de sua “intelighentzia” abriam contrastes com os cortes abaulados de suas montanhas; até que era tranquila. Não tinha violência e era difícil imaginar que alguém fosse desconfiar de investigar quem estivesse andando  por aqueles lados.

A água lhe escorria pelas partes do corpo ejetando a têmpera de uma carícia aliviante, misturada a um sentimento de revolta e ódio; o corpo fedia; o sentimento de ódio era a única forma que tinha de responder aqueles crápulas por terem lhe apalpado as partes pudendas. Devia estar fedendo também todas as suas partes internas, tomadas agora de uma vontade de triturar um por um, no dente, na unha. Cada amigo seus estavam sendo rigorosamente investigados, e aquela sala agora, de manhã, seria mais uma rodada de tortura. Amava Carlos demais e ninguém compreenderia... mas o que lhe passava pela cabeça? Tinha que inventar de se meter com aquele bando besta de adolescentes idiotas, comunistóides de meia tigela que nunca tinham visto uma cadeia por dentro? Não podiam nunca imaginar o que se passava nos porões do regime...

Meteram a bandeira vermelha da foice e do martelo no topo da montanha, e ficaram feito torcedor de briga de galo; rindo pelos cantos da rua, dando má nota feito uns sonsos. Logo logo a noticia espalhou feito rastilho de pólvora. Caíram sobre a cidade feito cães famintos. Qualquer cabelo comprido era motivo pra desconfiança: Maconheiro, filho da puta... vai falar ou vai querer que pendura!? Sumiram todos. Medo.

Começou a sentir o frescor da água e o alívio de estar só. Carlos era um rapaz bonito; boa prosa, inteligência aguçada, trazia a fama de ser esperto. Fora absorvido pela cidade. Não teve bastante sensibilidade para perceber que o perigo ali era muito maior que na Metrópole. Chamava-lhe a atenção e pedia cautela mas fazia questão de lhe responder com as palavras de Lenin: “A coisa mais importante em qualquer esforço para realizar algo é envolver-se na luta e, desse modo, aprender o que deve ser feito a seguir”. Ah Carlos, pobre Carlos; a causa era um fascínio pra ele, e pra ela também, tinha que reconhecer.  Impossível a impassividade naquele momento, enquanto pessoas morriam ou desapareciam sem deixar vestígios.

Mataram Wladimir Herzog. A imagem dele lhe apareceu pendurado na cela com a cabeça pendendo para o lado e os pés semi-dobrados rente ao chão. Pobre Wlado. Suicídio, deu n’O Globo!

A vontade agora era de gritar. Gritar bem alto, pra que todos ouvissem, que eles tinham matado Wlado. Gritar que lhe torturaram naquela delegacia fedorenta e cheia de ratos; gritar que amava Carlos e por mais que lhe torturassem nada faria para contribuir para aplacar a sede de sangue daqueles filhos da puta! Ah, Caratinga, que foi que lhe trouxe ali?! Pobre Wlado, pobre Carlos, pobres todos, pobres de espírito, de sentimentos, de piedade, de razão. Pagaríamos todos um dia! 

Targino pintou um cenário de torres de petróleo numa fleugma de reverencia ao milagre do crescimento e venceu o concurso de cartazes comemorativos da Semana da Pátria. Foram ver a feira. Iriam pra casa ao final do rápido passeio, poderiam conversar um pouco sobre o que estava acontecendo na Metrópole; não tinham tido tempo ainda, depois que Carlos chegou.

São figuras que agora lhe vêm; sobrepõem-se à imagem de Wlado pendurado no basculante; as torres pintadas por Targino, o tapete puído da rampa do cinema, o som da manivela girando, girando e girando cada vez com mais força, e o  choque nos mamilos, na língua; as lágrimas correm misturando-se à água do chuveiro. Como amava Carlos e só agora percebia isso com certeza! Quando desceram a rampa do Cine Itaúna, encontraram Josias. Gostava sempre de dizer que ficou confinado, que foi preso, achava que todo mundo era obrigado a tolerar suas piadinhas, por causa disso. Outro comunistinha de merda. Tirado a sabichão, se recusou a comentar a qualidade dos cartazes. Se Targino venceu, azar o dele, não via muitas qualidades em sua obra, afinal, “quem nasceu prá Don e Ravel, nunca chega a Antônio Carlos e Jocafi”, disse e saiu cantarolando “nas peripécias do amor, teimosa... nas maluquices que eu fiz, teimosa...” O que mais lhe interessava naquele momento era saber onde tomar uma boa “pinga”. Entrou no Bar Lusitano e misturou-se aos boêmios e noctivagos e de onde só sairia, bêbado, no outro dia.

A água lhe escorre pelo corpo e não é eficaz para desmanchar todas as lembranças. Mais dia menos dia, o aparelho cairá, não há como negar. O barulho do chuveiro ligado produz uma sensação de medo. A mesa será posta dentro em pouco e não haverá tempo para se desfazer de todo do cansaço. Os olhos grandes de Fátima lhe correrão o corpo dos pés à cabeça. Olhos mortais os de Fátima. Saco! Que estaria havendo entre ela e o pai?

- Como está Carlos?

O olhar de Fátima! Ah, o olhar de Fátima! - Carlos vai bem... muito bem...

Os cabelos, ainda molhados lhe escorrem pelas costas, protegidas pela toalha úmida; negros e brilhantes. Que olhos grandes os olhos de Fátima? Seu olhar dói!!! Saco...

O casamento foi acertado e distribuídos os convites.

O pai assobiava uma canção enquanto regava vasos de samambaia chorona, quando os agentes chegaram.

- Viemos em busca de Carlos...

- Carlos? está em lua de mel; casou-se há três dias  passados...

- Sabemos disso, por isso mesmo, estamos aqui... o convite...   - estendeu-o, ao velho reverendo.

Naquele domingo à noite, do púlpito da Primeira Igreja Presbiteriana de Niterói, foi lido o convite de casamento de Letícia e Carlos, em Caratinga, Minas Gerais.

Perigoso agente comunista, subversivo, envolvido em assaltos a bancos e seqüestro de embaixadores é preso no interior de  Minas; noticiaram os jornais de grande circulação  no pais.

Carlos virou mais um dado estatístico, apenas. Nunca mais se falou dele; um desaparecido a mais...

Letícia passou a interagir com grupos de Direitos Humanos, depois que o pai morreu de ataque cardíaco, poucos meses depois. Nunca mais voltou a Caratinga.

                                                                                                                                                                                                                  Wagner M. Martins – 24 de março de 2005

   

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