"Ai...Ôôôôuuu...
SILVER!" |
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Não
é possível definir até onde se misturam o dolorido e a saudade que
existem por trás desta razão. Quando o encontrei da última vez lançou-me
um desafio que causou espécie e que desvaneceu no instante de sua morte: "Quero ver quem volta primeiro."
Moramos naquela casa em minha primeira infância. Não tinha o
costume de visitar lugares éramos ainda muito jovens e não sentíamos
saudades e a última recordação que dela trago, remonta a meus dois,
dois anos e meio de idade. Getúlio Vargas era presidente e essa é a
certeza.
Numa das poucas vezes em que lá voltei, ele me guiava. Conversamos
na cozinha uma conversa lastreada por um sentimento de família. Uma nota de
"quinhentos cruzeiros" dava o tom de sua riqueza:
"nunca tive uma nota como essa!", dizia. Eu babava de inveja
eu nunca tinha tido uma nota de quinhentos e via aquilo como uma
possibilidade bastante remota, pois nos domingos, quando a possibilidade de
faturamento no efêmero ofício de engraxate era garantido, não me era
permitido trabalhar. Ele
não tinha freios. Nos seus dez, doze anos, era o único da turma que tinha
autorização pra fumar. Com o seu "continental-sem-filtro"(como
falava cheio de empáfia), preso entre os dedos da mão esquerda como todo canhoto
que se preze, debochava do resto de nós.
Teve influência significativa na criação das alegorias daquele
mundo fantasioso, vivido nos quintais da Rua de Baixo, aquele imenso território
livre.
Versado em todo tipo de "quadrinhos"
da época transportava para o nosso quintalzão,
todos os cacoetes e aventuras deles extraídos. Dividido
o sítio em território de bandidos e mocinhos, montados em cabos de
vassoura íamos atrás dos "bandidos",
empoleirados nas mangueiras ou emboscados pelas moitas do quintal. Gritava
em tom de autoridade o chavão tradicional do GiBi: "Mãozoalto;
não se mexa, você está preso!" Ele, era sempre o Xerife.
Quando
não estava no mãozoalto aboletava-se duma vara de anzol e se
metia a pescar nos poços que se formavam no corguinho dos fundos; aí, o
silêncio era uma intransigência; franzia a testa e cuspia, cuspia de lado
sem perder a concentração(cala a
boca seu v...), equilibrando uns tantos centímetros do borrão
contorcido de cinza, do seu continental-sem-filtro. Não
abria mão de suas preferências. Quando não estava de Xerife
era o Zorro, e galopando o seu
"pangaré-de-cabo-de-vassoura",
gritava com a bravura do herói destemido: "Ai...ooouuuu....Silver, avante!!!". De
suas leituras preferidas pela ordem, vinham o Bat Man e o Super Man(pronuncia-se
Báthmen e Sûpermen - ele pronunciava Batimân
e Supermân, tudo com o destaque tônico para a ultima silaba),
Cavaleiro Negro, Zorro, e das românticas, Capricho e Grande Hotel. -
Essa noite tem briguelo, lá no Pintor... -
Tô fora, vou pro pique-salvo na praça... Tive
nele um forte aliado na formação do meu hábito de leitura. Tomava-lhe
emprestado as revistinhas
que já tinha lido; ranhetava feito um piolho(só se me pagar um cigarro; só se me emprestar outra...), mas
acabava cedendo, depois de muita insistência - o ritual era o seguinte: "te
empresto se ocê me emprestar outra".
Certo dia, já com filhos largados das fraldas, num
carnaval onde comprei camarote em frente a televisão e fiquei os
dias todos vendo a impudicícia televisiva dos salões cariocas, recebi o
golpe contundente do qual até hoje não me refiz: "sabe
quem morreu? O Mauro do Zé Dentista..."
Seu maior sonho, era voltar a viver entre-folhas. Quem sabe para
revisitar o "quintalzão"(hoje não mais tão zão)
onde cavalgava suas fantasias; quem sabe para sentir a grandeza dos amores e
do romantismo de nossa infância, experimentados através das fábulas de
Capricho e Grande Hotel e perdidos na angústia do sonho da cidade grande
que transformou em fluxos neônicos-fluor-eletroniczados,
a beleza mirífica construída naquele quintal-pedaço-de-mundo-entre-folhas.
É bom viver entre-folhas. É bom. Boas rodadas de viola, o cacarejar
dos galináceos assaltados no meio da madrugada e virando
sopa-com-farinha-de-milho na casa de alguém que dorme o sono dos justos...
Os cabritos assados e saborosos, tão mais saborosos quanto mais difícil a
arte de adquiri-los... Ficou
entalado no subconsciente o desafio do último encontro. Ficou a fragrância
da felicidade que se vai esvaindo diante de tantas "grandezas
globalizadas que nos são impostas e somente servem para sepultar
cada pedaço do sonho lúdico de nossos dias. Em
nosso quintalzão o sonho já não mora mais entre-folhas. Não tem
mangueiras. O Zorro, o Cavaleiro Negro, o Xerife, pelejam em outra dimensão
e ali não voltarão jamais. Silver também não volta àquela pradaria. Esta
noite tem novela... crianças se enroscam pelos cantos do ambiente iluminado
da sala. Acho
que já não tem mais por lá quem fume continental-sem-filtro; acho remota
a possibilidade de que venha a encontrar quem me possa emprestar uma
revistinha do Batimân, do Zorro, ou quem me convide mesmo, para um cabrito
assado... -
Alguém aí pode me dar um continental-sem-filtro? -
Mãozoalto parceiro, me dê você, tudo... O
grito de mãozoalto deixa de ser a metáfora do quintal e se transforma cada
vez mais na realidade de nossas ruas. Dr.
Wagner M. Martins 07/11/00 |
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