TEJE PRESO!!!

 

            Nada tão e mais expectante quanto aquele dia. Terminada a obrigação, roupa-de-ver-deus no corpo, escalar o pastinho dos fundos, ganhar a chapada que dava nos costados da “Propeva”, percorrer algumas léguas mais e chegar na Rua.

 

            Desde a primeira vez, quando foi levado pelo pai, virou tarefa impossível perder celebração religiosa no povoado. Semana Santa, santos dias. Mundão de folgaria pela frente. Levantar machado em ocasiões dessas, arrisca mesmo é quem tem pacto com o “Cariá”. A folgança começava no domingo de ramos e varava até a ressurreição, significando lucro certo para as duas pensões locais que se abarrotavam de gente vinda de toda parte.

 

            Apeou, desarreou a mula, consultou um bom pasto e comprou ficha prá semana toda, na pensão de D. Maria. Lindeza de ambiente. Mesa farta e papo prá todo gosto. Não faltava nem mesmo um bom “causo de assombração” contado ali, no rabicho do fogão-de-lenha, enquanto  não dava a hora de dormir. 

 

Quanta lembrança, naquele ir-e-vir de festa! Conversa jogada fora “relando-imbigo-em-balcão-de-venda”, volta pra roça cheio de novidades. O algodão-doce-espetado-em-palito-de-bambu, o refresco de groselha (vermelim, vermelim, igual sangue!) e o espetáculo único das rodas-de-fogo espalhando um choro de luz multicolorido, seguido do pipocar de fogos. Uma sensação de deslumbre, um cenário indescritível sob o manto estrelado do céu! Aquilo era uma maravilha! E tudo acontecia automaticamente; estrado de madeira roliça beirando o casario do fundo da praça e um painel de tábuas no adro da Igreja, interligados ambos através de finos fios de arame, por onde deslizava o jato de fogo. Depois de um bailar desconcertado e insistente, o foguetim busca-pé incendiava um pavio central que se comunicava entre as carreiras de rodas emparelhadas, dando início ao espetáculo. Cada uma que se soltava, girava doidamente no espaço enchendo o céu de fumaça e brilho, até explodir inúmeras vezes a uns 50 metros do chão.

 

            Noite alta, fanfarronice na barraquinha de leilão, boas doses de pinga com canelinha (vermelim, vermelim, igual sangue!) e a cabeça girando, como que se fosse desgrudar do corpo. Melhor segurar um tempo; a noite prometia. Em volta da barraca, arrematava prendas à folgaça e a cabeça girava, e girava...

 

O lusco-fusco da noite mal iluminada, lhe entrecortava os sentidos e custava a encontrar equilíbrio por aquela rua larga que não tinha fim (...êta cabeça danada de rodar!). Que bestice aquela, para quem estava acostumado a percorrer trilhas  na capoeira antes do sol, a descobrir caça encantoada no breu da madrugada, capaz de num tiro só, derrubar paturi em pleno vôo... aquela caminhada não era nada impossível.

 

            As duas casas se pareciam. Tudo “igualzim” como nunca se viu “inhantes”; a porta avermelhada, aquela pestana no sobrejanelas, o rosa-arroxeado das paredes, a escadinha de subir prá ante-sala... será que tinha bebido tanto, a ponto de estar vendo as coisas em dobro?

 

Coisa de visão.

            Embicou na direção da porta e entrou. Estranho o silêncio. Cadê a lamparina, acesa sobre a mesa até a chegada do último hospede!? Cadê o braseiro, o fogão de lenha? Onde estaria...

 

Vapt!!!

 

Soou-lhe nas costas a bordoada do cabeção do cabresto, cuidadosamente dobrado, extremado pela pesada argola de ferro; e mais uma vez:

 

Vapt!!!

 

...e mais outra, e mais e mais, agora nas pernas, nos braços, nas costas, na cabeça, por todo o corpo...

 

A boca espumava de sangue (vermelim, vermelim que nem refresco de groselha!), o nariz, o ouvido, e deitado, imóvel, ficou, ofegante.

 

Chegou a autoridade e autoritariamente recitou o famoso refrão: “Teje preso”. Sem reação, feito porco no bangüê, foi levado e depositado na cela, fria e escura da cadeia local, sem qualquer assistência e com uma orgulhosa certeza: “estava preso o bandido”!.

 

            Dia seguinte, se falava nas ruas: “... um preso morto... ou, um morto preso?!”.

 

Acharam, nas ruas, que não deveriam ter prendido o homem que errou a porta da pensão; que era igualzinha a casa em que ele entrou; e por isso foi espancado, com um cabresto, até cair babando sangue; e por isso foi preso, porque errou de porta e invadiu propriedade alheia; e agora estava preso e morto; sob custódia da autoridade que lhe disse: Teje preso.

 

            Interrompida a tranqüilidade dos santos dias antes que se chegasse à ressurreição, um homem fugiu pra cidade grande. O cabresto, não levava não; ficou pendurado na cumeeira do telhado, sem as marcas da violência e sem as manchas do sangue (vermelim, vermelim, que nem pinga com canelinha!) do morto, que ficou preso sob custódia da autoridade e da consciência local.

 

Mais tarde, na cidade grande, o homem virou autoridade também.

            Dr. Wagner M. Martins
    
w_mmartins@bol.com.br

 


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