“UM TREM PARA AS ESTRELAS”

  Aquela porta voltada para a rua, entre aberta e cerrada, sempre insinuava uma terrível sensação de liberdade; o outro lado da rua, a cidade grande, aquele pé no mundo...

          À sombra do abacateiro no quintal, armado de capucho de algodão, desajeitadamente acondicionado com restos de linha de cozer, construía seu pincel mágico, rabiscava traços retorcidos e disformes, ininteligíveis, incompreensíveis e sem sentido, em telas improvisadas em tudo quanto erra espaço livre que achava pela frente.

          Que tal sonho lhe cobria a fronte, descendo como tiara ornada de cores surrealizadas de tamanha mesmice, apenas sob o testemunho da passarada, que sem encanto, trinava sobre a ramagem desarrumada e descolorida das árvores, em contraste com as formas do menino de calça curta e cabeça raspada!?

          Por através da mesma porta entre cerrada e aberta, o vislumbre do sonho lhe penetrava o ventre, e em quanto mais sonhava, vomitava cores e quantas mais lhe eram possíveis.

          Tamanho devaneio lho conduz ao encontro da itinerância. Com uma câmera na mão, retrata a miséria do cotidiano, enquanto descansa temporariamente a decisão de se tornar repleto de cores, e canta “Prá não dizer que não falei de flores...” Eram agora, de chumbo, os anos 64... Não se ouve mais o canto do pássaro, pois ao pássaro se proibiu o canto, e com a proibição do canto, proibiu-se também a manifestação da beleza, por todos os cantos da nação. Quem ousar quiser em brandir seu pincel, ainda que mágico, ou de cores, será submetido sumariamente ao juramento do AME-O OU DEIXE-O.

          O espectro do Brasil pátria amada, tantas vezes repetido no quintal da Rua do Grupo, tantas vezes insuflado por Dona Terezinha Haussman, nas aulas de Moral e Cívica do Grupo Escolar, se reveste agora de uma tristeza ensandecida, encarquilhada nos recônditos de sua terra mais amada, de seus parceiros de infância, de sua poética gloriosa, de suas cores matizadas do verde de Entre Folhas. Eu não mais te quero pátria amada; não assim, não assim...

          Corre à casa-mãe, de volta, já num tempo longo, quando suas cores já tomavam conta do universo; quando a imaginação de uma semi cerrada porta lhe dava agora a tonalidade do mundo, onde, absorto e livre, subiu ao terceiro grau de sua inteligência... Ah! a terra-mãe! Seu solo já não mais espelha a ternura de seis ancestrais. Ah! a terra-mãe! seu contentamento não se entremeia e não se encanta com aqueles que ousaram voar por patamares mais ousados.

          O choque é sintomático e a absorção de toda violência que lhe vem lançada, em forma de desagravo ao sagrado direito seu de raciocinar e de pensar, toma-lhe o momento maior de sua vida. Eram as bodas – de ouro -, dos autores de seu maior sonho.

 O destino de ter guardado nas entranhas de sua intimidade a prova maior de sua convicção marxista levou-o à masmorra do cárcere. Ora se faz necessário enfrentar com sobrecenho atento ao deboche que incandesce sobre toda sua obra, emparelhada em exposição, atadas às paredes lânguidas de uma sala de aula da Escola Estadual. Que cena mais dantesca; gritos, acusações, bravatas, tudo lançado sumariamente, em forma de ódio, rancor, ira, estupor, tudo lançado contra quem somente amava, sem ódio, sem ressentimentos, molequemente amando, feliz, plenamente poeta – bissexto que era -, artista plástico, apenas.

          Noutro dia, amanhece na República Democrática da Alemanha. Nada melhor que comunista de tamanha laia, vá expiar sua culpa de devorador de criancinha – assada ainda por cima -, de desrespeitador de família, filho da mula-sem-cabeça, bem próximo da “cortina de ferro”, bem ao ladinho do muro de Berlim, e sentir o quanto é bom ficar querendo achar que gente que não tem riqueza, também tem direito de almoçar, de jantar, de ter casa pra morar, de ter terra pra plantar – “sai pra lá minino, esse negócio é coisa de comunista excomungado, filho de Belzebu, maziado com mula-sem-cabeça”.

          Num passo em falso, sublevou-se em sua alma de grande ser humano, grande artista plástico que foi, deixando por finalizado o seu sonho matéria. Num golpe de mágica, daqueles que fluem sorrateiros, soltos, lépidos, livres, inconsistentes, matreiros, furtivos e irresponsáveis, como sempre foi sua vida, tomou um Trem para as Estrelas e foi formar com o Palhaço Meio Quilo, com o radialista Ricardo, com mestre Salvador Mantuano, com Dr. Humberto de Paiva, com Dr. Afonso Gomes, com Milton Vieira, Avelino Marques e tantos mais, uma constelação colorida, repleta de fantasia, retratada numa tela de saudades e lembranças, com uma assinatura: JOSIAS MOREIRA.

 wagner m. martins

    


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